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CRÔNICA 15 - SÓ NA MÃOZADA (publicada na Revista Tatame 190)
E continua de pé, pavimentando a estrada que trilha com os corpos que derruba. Amassados, rasurados, moídos ou destroçados, é tudo matéria prima para o caminho que quer seguir. Pedaços de orgulho partido escondidos por entre os ladrilhos sujam os pés que as lágrimas dos derrotados vão enxaguar. Com o olhar reto e fundo de quem fita o horizonte através da carne do adversário, segue retilíneo e cortês. Cruel como só os justos podem ser, atropela e trampa na porrada, sem ódio ou rancor, só violência pura e precisa. Nem um soco a mais, é o que é, e que saiam da frente porque Cigano vai passar.
O mais imperfeito dos campeões. Wrestling apenas razoável, jiu-jítsu limitado, mas com o mais eficaz boxe do peso pesado. Não apenas pelo refinamento da arte, que é preciso, ou pela coragem de se lançar em qualquer brecha que o adversário deixe com tanta vontade de acertar que nem considera poder errar. E se não houver brecha, vai fazer uma rachar. Mais do que anos de boxe, luvas, sombra, corda, sparing, suor, contusões, uppers, diretos, cruzados. Cigano é especialista na arte milenar de meter a mão na cara, largar o braço, deitar na mãozada. A técnica curva o tronco e baixa a cabeça para a voracidade passar. Quando soca, há mais do que precisão e má intenção, há toda sua família, país, ideais, horas de treino, vontade, gana, ambição, sofrimento, memória, canalizados na ponta de um punho. Uma marreta da Sexta Feira 13 que estilhaça o que acerta, golpe que sempre subtrai. Ar, coragem, ímpeto, sangue, dentes. Golpe a golpe o outro vai tendo coisas a menos e Cigano sempre querendo mais. Até que cai. E todos caem. E os que não caíram talvez tenham desejado ter sucumbido antes de tomarem a maior sova de suas vidas e voltarem para casa mais humildes e disformes.
O atual campeão do peso pesado do UFC ainda é tão jovem e poderoso. Com o que será pavimentada a estrada que ainda tem pela frente, só o tempo dirá. Tantos são os campeões que acabam tropeçando no próprio ego, acreditando em todos esses elogios que caras como eu vão fazer. Pra mim e tantos, é fácil. Somos profetas do passado. Escrevemos das glórias como se fossem nossas, sem debruçar uma gota de suor sobre o teclado. Que Cigano continue simples, afeito as coisas práticas da vida, esquivando das bajulações que só corrompem. Que a mídia não lhe capture a alma, que os empresários não suguem todo seu sangue. Porque é um campeão genuíno. Sem falsa modéstia, sem ameaças premeditadas, sem frase de efeito, sem reverenciar quem despreza. Um homem realmente pacífico, a prova mais tocante de que a brutalidade do MMA é esportiva, que apenas luta pelo que ama como se não tivesse nada a perder. Com o ímpeto de quem quer alguma coisa demais, e a leveza de quem não quer nada mais.
Enquanto a genialidade de alguns é indecifrável, com movimentos incríveis e poéticos, enquanto Anderson Silva luta em aramaico, Cigano luta em inglês com tradução simultânea. Simplifica a equação, atrofia o MMA de volta a semente, em sua forma mais digerível, traduz a mistura de artes num nocaute. Faz o esporte parecer simples, faz da enciclopédia, b a bá. Atrai mais do que ensina. É a interface que os 22 milhões de espectadores pela Rede Globo precisavam. Cigano vai levar milhares de novos fãs pela mão.
Junior Cigano é um campeão do povo. Tão aparentemente comum que faz todos acharmos que se fossemos um pouco mais altos, ou velozes, ou pesados, ou fortes, ou tivéssemos feito MMA ao invés de psicologia, teríamos sido como ele. Quase que achamos que não fomos campeões do UFC por um triz. Faz o que é ilusão parecer real. Humaniza o impossível. Um ídolo alcançável, de carne e osso. Imperfeito, feio, bobão quando está feliz. Basicamente como quase todos nós.
Na circunferência do cinturão de campeão de Cigano cabem todos, o lutador no espelho. Do primeiro ao último segundo, em pé ou no chão, de direita ou canhota, prova que é um homem de palavra, íntegro, macho, buscando o que diz tanto querer, na nossa frente, sem vergonha, sem medo de não ter. Deixa as desculpas no vestiário, os passos pra trás para outros lutadores, esquivas, gritinhos, não são seu estilo. Se despe das bajulações, dos tapas nas costas, dessas porcarias que não servem pra nada, e calça as luvas pesadíssimas de tão cheias de sonho, veste nossa carapuça, entra em alto frenesi porque tem tão pouco tempo, a vida tão curta, se é para perder que seja sem arrependimentos. E parte violento, sinistro e puro. De peito aberto, com a cara e punhos fechados. E em cada golpe um estrondo, um microverso nascendo, uma supernova explodindo pra sempre, fagulhas fantásticas ardendo nossa retina.
É um atleta que o planeta admira, mas o ídolo que o Brasil tanto precisa. Sangue vai ser derramado, a contagem de corpos vai continuar, a pilha vai aumentar. Cigano veio para construir de tanto destruir. Num mundo cínico onde tudo é grana, ele luta com paixão, vence e transborda. Se a lágrima dos derrotados enxágua seus pés, as suas limpam a nossa alma.
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