CRÔNICA 12 - AQUARELA DE SANGUE (Publicada na revista tatame 180)
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CRÔNICA 12 - AQUARELA DE SANGUE (Publicada na revista tatame 180)



Todo corpo de Quinton Jackson debruça sobre as cordas do ringue, pendurado quase sem tocar o chão, quase como um beija flor morto em pleno ar. Os gritos histéricos de 100mil fãs abafam os pedidos de socorro de seus treinadores que arrebentavam as gargantas a procura dos paramédicos. Papéis prateados caem do teto celebrando aquele momento mágico, refletindo a euforia de todos e as luzes do estádio, deitando levemente e colando no corpo suado do derrotado, se misturando à poça sangrenta que formava na lona e escorria para o chão respingando nos pés dos comentaristas. De sua cara escura jorrando sangue, cartilagem do nariz esfacelada, ossos da face fissurados e olhos apontando pra dentro vem à memória de um dos momentos mais poderosos do MMA. Uma obra de arte pintada em aquarela de glóbulos vermelhos. Ao fundo seu nêmeses, nem vilão nem assassino, mas um herói temido, branco, careca, tribal na nuca, uma criatura demente e sem controle chamada Wanderlei Silva subia nas cordas e urrava marcando seu território. Os silenciosos expectadores asiáticos, aflitos e em êxtase, aplaudiam de pé a besta fera que se erguia no topo da montanha chamada Pride e fincava suas garras no hall das lendas do combate.

Impossível falar de Wanderlei Silva sem sermos respingados de sangue ou pisar eventualmente em estilhaços de dentes. O mais brutal dos lutadores de MMA lapidou a machadadas sua rota traumática de violência, nocautes, frenesi e glórias. Essa não é uma crônica sobre sua carreira, mas um espasmo de memória. Pequenas fatias de uma grande história ainda inacabada tal qual flashs de imagem estourados entre um soco e outro.

Mais do que conceitos de luta, ele distorceu nossa percepção de heroísmo. Em MMA o mocinho não é aquele que dá declarações politicamente corretas, é o que entra sem medo de bater na curva, é quem nos entende e coloca o corpo para acelerar sem medo de queimar um fusível, rubrica as vitórias e não choraminga derrotas. Nossos gritos eram o hormônio que corria em suas veias, os litros de sangue que enchiam seus olhos, a corda que suas mãos davam ao girar. Foi o primeiro grande lutador a entrar em simbiose total com a massa. Wanderlei entrava nos rings do Pride sobre uma catarse de berros, palmas e música eletrônica, nosso carrasco, nossa máscara, enquanto a vítima esperava indefesa, paralisava frente ao inevitável. Um porquinho no abatedouro. Não importava quem estava lá, era mais uma questão de como Wanderlei iria despedaçá-lo. Nunca beleza e brutalidade se mesclaram tanto quanto em seus momentos, um lutador que poderia ser escrito por Quentin Tarantino.

Quem esteve lá, no IVC 2 em 97, diz que se apagassem as luzes do estádio cada golpe entre Wanderlei e Arthur Mariano explodiria em fagulhas que iluminariam momentaneamente todo o espaço, como uma briga de facão seco e em brasa. Quem ouviu o estrondo oco de seus pisadões esmagando a caixa craniana de Dan Handerson contra a lona, martelando o chão seguidas vezes, diz que o derrotado só saiu vivo por que seu destino era outro. O estalo chicoteado do ligamento do ombro de Sakuraba estourando ao ser quebrado no solo como coco se espatifando na calçada, deve ser ouvido por ele até hoje em pesadelos. Wanderlei marcava com ferro quente os derrotados.

Sua história envolve ainda muitas derrotas, o nascimento de seu filho, cirurgias plásticas, a abertura de sua academia, o racha com Alejarra, uma postura de vida menos agressiva e tantas mudanças, mas nada disso interessa aqui. Esse texto é reflexo apenas de seu momento áureo, do doentio no espelho com aquele olhar louco que vem da medula, que tem apenas um alvo, a eternidade.

Com as duas mãos trançadas numa nuca as suas joelhadas colocaram para dormir as dúvidas que restavam sobre MMA ser o esporte mais incrível do planeta. Foi mais do que um lutador, foi um monstro hipervascularizado de olhar vidrado, respiração pesada, uma besta fera acorrentada dentro do calabouço tenebroso de nossa psique de onde saia para matar nossa sede de agressividade. Não entrava no ringue, era solto lá dentro. Ele não dava desculpas, nem nós. Wanderlei fazia o que tinha que fazer e as regras do esporte pacificavam sua violência e perdoavam nosso pecado.

Hoje ele é um homem pacato, mas Wand o destruidor mora em nossa alma para sempre. É a criatura que ainda esperamos rever cada vez que entra no octagon. Seu corpo já caiu várias vezes, mas a lenda permanece de pé. A sua trajetória é poderosa e sem romantismos. É a rosa de aço aparafusada no asfalto. É o gole fundo de absinto. É o trauma que marca uma vida. Quebrou e foi quebrado por nós. Era parte gente, parte a gente. Ele era milhões. Wanderlei foi nosso maior exército.



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