CRÔNICA 2 - Sangue ruim
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CRÔNICA 2 - Sangue ruim



Todo homem já sentiu o sangue ferver, os ovos incharem, a raiva cegar e o teto ficar preto quando chegou a hora do pau cantar. O "te pego na saída" já aditivou a testosterona de todos nós, pelomenos uma vez na vida, nos tempos de colégio. Por mais que não estivéssemos envolvidos na amadora peleja, sentíamos um clima denso no ar sujeito a trovoadas e pancadas de chuva, como se alguma coisa muito ruim e muito séria estivesse prestes a acontecer. Normalmente nada acontecia. Um menino se trancava no banheiro e dizia que estava com dor de barriga enquanto o outro já tinha saído mais cedo para ajudar a mãs nas compras do mês. Era um anticlímax enorme. Tanto xingamento, promessas de destruição e a revelação de supostas técnicas de uma arte marcial desconhecida acabavam em um mero olho roxo e olhe lá. Foi mais ou menos isso que senti ao final da luta entre Rashad Evans e Quinton "Rampage" Jackson, no UFC 114.

Os dois passaram um ano se ofendendo, metendo o dedo na cara do outro, chamando a mãe de gorda no twitter e prometendo nocaute. Nada disso aconteceu por conta do mesmo motivo que leva rixas de escola a não irem adiante. Raiva e agressividade são as facetas mais comerciais do medo. Ser agressivo em palavras ao ponto de não precisar chegar às vias de fato é um método bem praticado por machões. Um torcendo para o outro ficar com mais medo do que ele próprio e desistir da idéia da briga. Mas num esporte de contato não há desistência, aprendemos isso no filme Karatê Kid. Os dois tem que se enfrentar e o couro da luva vai punir o despreparado. Vimos uma luta aonde ambos estavam com tanto merdo de perder depois de tanta promessa de vitória que venceu o que tinha menos a perder. O que falou um pouco menos, o que teria menos desculpas para dar em caso de derrota. O azarão.

Medo trava o raciocínio e liga o instinto. Em MMA, um lutador com medo retarda o soco, dá um passo a mais pra trás e sente alívio quando o round acaba. Luta mal. Fogem a essa regra apenas os dois dos tipos de homem mais perigosos do planeta. Aquele que é tão motivado pelo medo que mói esse sentimento em pedaços de agressividade, ataque, perseverança e instinto destrutivo; e aquele que não sente medo. Aquele que prova que a calma é a melhor munição para uma arma letal.

Brock Lesnar tem filho e família. Duvido que seja uma besta fera que sai esmagando coisas e arrancando cabeças quando está em casa, mas no octagon seu prisma converge o natural medo da derrota em competitividade, em treino. Num foco devastador de ódio consciente. Levando em conta que medo é uma reação do cérebro a momentos de perigo que nos faz correr para a segurança, podemos dizer que Lesnar veio com defeito de fabricação. É um defeito ótimo num guerreiro otomano, num último sobrevivente de um mundo pós apocalíptico e num lutador de MMA com 130Kg. Diferente de Rashad e Quinton, ele se beneficia do sangue fervido. Sua certeza de supremacia física sobre quase qualquer ser humano não armado da Terra lhe confere uma parede impermeável de confiança que mantém os efeitos negativos do medo do lado de fora. Brock Lesnar é o segundo lutador mais perigoso do mundo.

Calma é muito mais perigosa que raiva. A raiva é um toro doido difícil de domar, a calma é o vento. Pode ser brisa, pode ser tornado. É força natural imensurável. Um estado de espírito que floresce em momentos de ponderação e paz, mas não em Fedor Emelianenko. Sua calma sepulcral reina em meio ao caos. Reparem no cara a cara com qualquer adversário antes da luta. Ele não faz contato visual, não tem interesse. Suas expressões faciais estão completamente relaxadas como se fosse tomar uma xícara de chá de frutas silvestres com Pai Mei. Mas quando o juiz diz para os dois se afastarem para começar a luta ele levanta os olhos, por uma fração de segundo, e dá uma breve olhada para o oponente. Não exatamente para ele, mas na direção, quase como se o adversário não estivesse ali. Esse tipo de olhar é associado a um padrão de comportamento anti-social e disfuncional característico de psicopatas. Quando entram no modo automático não olham diretamente para nada, não fixam ponto de interesse, olham apenas através, numa meta sinistra que vai além da carne. Uma calma incontrolável de quem sabe o que quer e vai fazer. Nesse momento a maioria dos lutadores sente uma certa paúra e a luta já começa quase decidida. A não ser contra Brock Lesnar. Fedor Emelianenko é o lutador mais perigoso do mundo.

Citar excessões é ótimo para tomarmos as rédeas da regra. Xingamentos e ofensas em coletivas de imprensa são um barato, mas tendem a ser fruto de medo, que atrapalha o raciocínio e a alta performance. Na próxima vez que dois lutadores estiverem dizendo que se odeiam e etc, esperem lutas mornas e seguras, ao contrário do que toda agressividade anterior indicava. Cão que ladra tende a não morder. Fora, mais uma vez, Brock Lesnar.

TWITTER: @nicoanfarri



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